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Os Contos da menina-Mulher

Quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto. Estes são os meus pontos sobre saúde, culinária e lifestyle. Aqui toda eu sou vírgulas, reticências e, no extremo, pontos de exclamação ou mesmo um ponto final!

Seg | 24.07.17

Quando um objeto nos representa

Só falo disto esta semana, porque, aqui entre nós, estive a digerir este adeus.

 

Olá. Eu sou a m-M. E apercebi-me que o meu patrono é uma carro. Sim, sou uma gaija e hoje, quase 10 anos depois, percebi que a minha alma era representada, materialmente, pelo meu carro. Pelo meu Micrinha azul petróleo.

 

Quem havia de dizer... que naquela noite de fevereiro, há 9 anos e tal, quando esvaziei as minhas poupanças e comprei o meu 1º e único carro... estaria a fazer um amigo, uma memória para a vida.

Detestei o meu Micrinha quando o vi pela 1ª vez, mas era para o que eu tinha dinheiro. Era de mudanças automáticas, logo 50% da adaptação de que eu preciso, estava feita.

Fiz um bom negócio, mas fiquei (ainda mais) pobre nessa noite. As poupanças de 12 anos foram investidas naquele carro em 2ª mão, que mal se via no escuro.

 

E aí começou a nossa relação: ele ensinou-me independência, responsabilidade e loucura. Tivemos acidentes (quase morri dentro dele, 3 vezes, mas isso agora, não interessa nada...), tivemos aventuras (lembras-te de quando fizemos a curva da Lapa a 90 km/h e quase capotamos?), tivemos escapadelas de quase-teenager inconsciente.

Com ele aprendi a desenrascar-me, a descobrir para onde ir, mesmo quando não sabia onde estava. E quando demos conta? Fazíamos 200 kms todos os dias para ir trabalhar. E, mais tarde, fizemos 320 km para chegar à nova casa.

 

Ele, pequeno (mas com 5 portas), de cor estranha, com barulhinhos típicos e uma adaptação feita à mão pelo meu pai, era como eu: com o seu quê de especial. Cabia sempre mais uma pessoa, cabia sempre mais um saco, andava sempre "só mais um km". Pressentia quando quem o guiava era má-rés. Preferia a gasolina da Prio e portava-se mal quando teimava em alimenta-lo a Galp.

 

Ele, tal como eu, chegou a Lisboa e praticamente parou. Só avançou quando os solavancos da vida o faziam ser o meu salvador. 

Ele tornou-se parte de mim, reconhecível ao longe, com ou sem dístico.

Dentro dele nasceram frases que são mantras, que são piadas, que são o meu crescimento.

 

Fez sábado uma semana, fui leva-lo para abate.

Os seus 19 anos e o meu estilo de condução agressiva e a adaptação estavam a torna-lo caro, difícil de manter. Especialmente tendo em conta que, em Lisboa, pegava nele, com sorte, de 2 em 2 meses. E ele não gostou de Lisboa. Foram os pneus que começaram a gastar como se não houvesse amanhã, foram as baterias a descarregar ao fim de poucos meses, foram os sinais de ferrugem. Olhei para os custos anuais, olhei para o valor que me dariam por ele e, no meio de uma discussão acessa no Porto, tive uma luz: a sair das minhas mãos, só para abate.

 

Conduzi-o pela última vez fez agora duas semanas e ele portou-se tão bem, a pedir-me para não ser entregue, que eu sei... entrei com ele no centro de abate orgulhosa da vida que lhe dei, da vida que vivemos. Com o meu quê de dona possessiva e ciumenta (se não podes ser meu, não vais ser de mais ninguém!) e com o meu muito de pena.

 

Enquanto o pesavam percebi tudo isto que partilho aqui hoje. Olhei para ele a brilhar ao sol. Chorei. Sim, chorei de saudades do meu Micrinha (tal qual como choro agora, ao escrever) com a dor de quem vai deixar um amigo, sozinho, num sítio mau. E não mais voltar.

Tirei-lhe duas fotografias finais. Assinei todos os papeis. E saí.

E escrevo aqui hoje porque é sempre um dia "diferente" quando somos humanos o suficiente para perceber que a nossa alma foi representada por um objeto; um objeto que não amamos no início, mas que evoluiu.

Como eu espero ter evoluído nos 9 anos que vivi com o meu Micrinha azul.